Piranha
“Viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós.”
Maria Gabriela Llansol
Falar do que eu vejo.
Falar do que o outro me fala.
Falar do que pode ser falado.
– E se não há espaço suficiente para a atração, meu amor,
é porque ela se foi. Ela, também, flutua.
O que pode ser falado e não é visível?
– Fulano disse: a morte.
Beltrano disse: o amor.
Sicrano disse: a preguiça.
Tomar por objeto os próprios limites.
Ver o que pode ser visto.
Ver o que alguém viu.
– “Todas as cores concordam no escuro.”1
A luz não é visível.
Eu a percebo quando ela ilumina um objeto.
A palavra não é inteligível.
Eu a compreendo quando ela se encontra com um objeto.
– Não me confunda com uma citação.
Antes mesmo que meu nome existisse,
minha função já estava bem clara.
A piranha é um peixe carnívoro
das águas doces da América do Sul.
Sua etimologia é discutível.
– É o que lembram os Primitivos,
antes da chegada dos Modernos.
Pirá = Peixe + Anha = Diabo = Peixe Diabo
Pirá = Peixe + Ranha = Dente = Peixe Dente
Pirá = Peixe + Ánha = Tesoura = Peixe Tesoura
Nesse período confuso,
o Novo Mundo chega de navio.
E, quando a fase do Bom Selvagem chega ao fim,
a Piranha ganha independência.
– Peixe Diabo se inscreve na mente.
Peixe Dente se inscreve no corpo.
Peixe Tesoura se inscreve na cultura.
Sua figura aos poucos se legitima.
As tradições são vistas à distância.
Nasce o Dia de Finados
e a primeira geração de Piranhas Brasileiras.
– Eu estou aqui. Eu te escuto.
O bando não mais se reconhece.
Novos cientistas abraçam a Teologia Vodu.
Depois de sangrarem bons escravos,
as piranhas começam a dançar.
Há sempre chuva no Dia dos Mortos.
Novos lagos são formados.
As piranhas são afastadas de seus bandos.
É criada a palavra saudade,
como o símbolo de uma conquista nacional.
Os lagos não suportam os peixes por muito tempo.
O sol seca rápido aquilo que transborda.
A disputa por espaço amargura uma batalha.
As piranhas são especialistas dos grandes desastres.
– É meu o que não interessa.
Entre as novas multidões,
Cresce o desejo de estar aqui ou ali.
Chegam aos lagos a ideia de atraso
e a perda da função erótica da palavra.
– Existe tão pouca chance de vida nesses lagos quanto nos outros.
Se antes servimos a um império, agora somos nosso próprio império.
A impossibilidade de existir lagoa abaixo é tão grande quanto resistir ao mainstream.
Se algum dia pensamos em indistinção, chegou o momento:
Estamos tão tristes quanto todos. Nossa miséria começa a envelhecer.
Agora, somos um. Uma certeza quase religiosa.
A sopa de piranhas é um alimento afrodisíaco.
O movimento do seu rabo aumenta a transação comercial.
Sua fama surge entre certos narradores mas, pessoalmente,
ela não gosta muito disso.
– Estou cansada de encher minha barriga com gente viva.
Vou optar pelos mortos. Eles estão mais leves.
O espírito já saiu do corpo.
Sua fama se torna palpável,
mas nem sempre corresponde ao apetite.
Ela prefere estar oculta para não sentir-se perseguida
e fica ruborizada quando toca nesse assunto.
– Não me pergunte o que eu vim fazer aqui. Essa pergunta é muito difícil.
E, se há alguma novidade nessa história, é a minha vontade de ficar.
As perguntas são minhas, meu amor, e se forem suas também,
o mundo vai me parecer ainda mais assustador.
A ideia de bando ganha outros sentidos.
A comunidade nos lagos se espalha.
A Piranha perde a fome.
– Vamos, meu amor, jogue-se para cima.
O lago que você aspira deixou de existir.
Por esses dias, a gentileza anda um pouco obscena.
Dia e noite, luz e sombra.
Outras gerações começam a nascer.
Alguns peixes viram símbolos.
Alguns narradores perdem o tônus.
Alguns peixes evaporam com a água,
outros viram terra.
Alguns narradores vibram nas águas,
outros viram terra.
Hoje é um dia forte de chuva.
A terra está sem forma e vazia;
há trevas sobre a face do abismo,
e o Espírito paira sobre as águas.
A voz do narrador desapareceu.
A Piranha comeu o romance.
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1 BACON, Francis. (1696) Essay III., Of Unity in Religion. The Essays or Councils, Civil and Moral.