A nudez da cópia imperfeita
Tentei escrever este livro durante o linchamento virtual. Escrever, no entanto, era impossível. No princípio, o texto imitava o fato, resistia a ficção, narrava a experiência e não os seus efeitos. Eu queria me livrar da ferida autobiográfica, mas para escrever é preciso esquecer. E o que é o esquecimento senão um lembrar com imagens arquivadas?
Uma performance de um artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2017 torna-se motivo de comoção e violência. Enquanto apresentava uma releitura da obra Bichos, de Lygia Clark, na qual punha o próprio corpo nu à disposição do espectador para ser manipulado, Wagner Schwartz teve seu corpo (sua obra) relado por uma criança, a filha de uma grande amiga sua, que estava no recinto no momento da apresentação. Um vídeo do momento foi capturado, retirado completamente de seu contexto e disseminado internet afora. Rapidamente uma enxurrada de ódio, violência e selvageria passou a ser direcionada ao artista. Nem perto de poucas foram as ameaças de morte que Schwartz sofreu.
A situação toda compõe uma triste parábola: o Brasil odioso, odiento, marcadamente fanático que passamos a ser a partir de 2016 já se afigurava ali, na inocente sala de um museu. O corpo masculino reduzido à impotência, a arte dessacralizada, tornada objeto prosaico, uma série de fatores identificados com a descolonização do pensamento dominante, geraram uma reação coletiva criminosa, marcada pela perseguição, pelo assédio psicológico, por ameaças explícitas nas redes sociais e, principalmente, pela desenfreada repetição de um covarde encadeamento de fake news em veículos e grupos identificados com a extrema direita brasileira — que até mesmo a morte do artista elucubravam.
Neste relato visceral e experimental, no qual se fundem instalação e texto, performance e palavra, obra e autobiografia, Wagner Schwartz oferece um testemunho inigualável do artista vitimado pelo autoritarismo, pela sombra perene da violência, por um engenhoso e dissimulado mecanismo de censura que mesmo nos espaços (e países) ditos democráticos vige.
Sobrevivente em mais de um sentido do regime autoritário que tomou de assalto o Brasil a partir de 2016, Wagner Schwartz demonstra, neste romance sem paralelos, a formação do modo-de-ser da arte e do artista que desejam, ainda que resfolegantes, sufocados, oprimidos, sempre mais um sopro de vida.
Editora Nós
La nudité de la copie imparfaite
J'ai essayé d'écrire ce livre pendant le lynchage virtuel que j'ai subi. Écrire, toutefois, était impossible. Au début, le texte imitait les faits, résistait à la fiction, racontait l'expérience et non ses effets. Je voulais me libérer de la blessure autobiographique, mais pour écrire, il faut oublier. Et, qu'est-ce que l'oubli sinon se souvenir au moyen d'images archivées ?
Une performance au Musée d’Art Moderne de São Paulo, en 2017, devient un motif d’émotion et de violence. Tandis qu’il présentait une relecture de l’œuvre Bichos, de Lygia Clark, dans laquelle il mettait son propre corps nu à la disposition du spectateur afin d’être manipulé, Wagner Schwartz a vu son corps (son œuvre) effleuré par une enfant, la fille d’une grande amie, qui se trouvait dans la salle au moment de la présentation. Une vidéo de ce moment a été enregistrée, complètement coupée de son contexte et disséminée sur internet. Rapidement, un torrent de haine, de violence et de sauvagerie s’est abattu sur l’artiste. Nombreuses ont été les menaces de mort reçues par Schwartz.
Toute cette situation compose une triste parabole : le Brésil odieux, haineux, particulièrement fanatique que nous sommes devenus depuis 2016 prenait déjà forme là, dans la salle innocente d’un musée. Le corps masculin réduit à l’impuissance, l’art désacralisé, devenu un objet prosaïque, une série de facteurs identifiés avec la décolonisation de la pensée dominante, ont provoqué une réaction collective criminelle, caractérisée par la persécution, par le harcèlement psychologique, par des menaces explicites sur les réseaux sociaux et, surtout, par la répétition effrénée d’un lâche enchaînement de fake news dans des médias et des groupes identifiés avec l’extrême droite — qui envisageaient même la mort de l’artiste.
Dans ce récit viscéral et expérimental, où se mêlent installation et texte, performance et parole, œuvre et autobiographie, Wagner Schwartz offre un témoignage inégalable de l’artiste victime de l’autoritarisme, de l’ombre pérenne de la violence, d’un mécanisme astucieux et dissimulé de censure en vigueur jusque dans les espaces (et pays) dits démocratiques.
Survivant, en plus d’un sens du terme, du régime autoritaire qui a pris d’assaut le Brésil à partir de 2016, Wagner Schwartz montre, dans ce roman sans pareil, la formation du mode d’être de l’art et de l’artiste qui, quoique haletants, suffocants, opprimés, désirent toujours un nouveau souffle de vie.
The nakedness of the imperfect copy
I tried writing this book during the time of my virtual lynching, but writing proved impossible. In
my first attempt, my text seemed an imitation of the facts, resisting the transformation into
literature; it merely narrated an experience, not its effects. I wanted to free myself from the
autobiographical wound, but, in order to write, one has to forget. And what is forgetting if not a
kind of memory—with archived images?
A performance at the Museum of Modern Art in São Paulo in 2017 led to an uproar and to violence. In his reimagining of the series Bichos by the artist Lygia Clark, Wagner Schwartz made his own naked body available to the audience to be manipulated. During the performance, his body (his work) was grazed by the hand of a child, the daughter of the artist’s dear friend, standing nearby. A video clip of that particular moment was captured, taken out of context, then disseminated across the internet. Immediately, a torrent of hatred and savagery was directed at the artist. Schwartz received countless death threats.
Taken as a whole, this story functions as a sad parable of Brazil at its most odious and hateful, markedly fanatical and reactionary, a Brazil that in 2016 had already revealed this side of itself and was now invading the room of a museum, no longer a safe space. A man’s body reduced to impotence; a work of art given no sacred purpose but turned into a commonplace object; a perceived threat to the dominant ideology colonizing the mind—all this would generate a collective, criminal response, one involving persecution, psychological assault, explicit threats online and, most disturbing of all, the unleashed and cowardly dissemination of fake news by groups and networks identified with Brazil’s extreme right. These voices clamored for the death of the artist.
The book before you is a report, both visceral and experimental, a merging of text and installation; of performance and word; of work and autobiography. Wagner Schwartz offers his unique testimony of an artist victimized by authoritarianism, by the enduring shadow of violence and by the cunning, obscure mechanism of censorship that prevails even in spaces (or nations) that are supposedly democratic.
The survivor, in more than one sense, of the regime that took over Brazil in 2016, Wagner Schwartz demonstrates, in this book like no other, the formation of a mode-of-being of the artist — and also of his art; even if gasping for air, suffocated and oppressed, they both desire one more breath of life.
Editora Nós [Brazil]
[Translation: Johnny Lorenz]
O corpo é o começo e o fim de tudo
Michel Laub, Valor Econômico, 3/11/2023
Ainda haverá muitos livros explicando o transe moralista que o Brasil viveu nos últimos anos. Dessa lista será difícil tirar A nudez da cópia imperfeita, do coreógrafo Wagner Schwartz.
É importante lembrar em detalhes aquilo que o autor passou. Em meio a centenas de comentários privados e públicos, boa parte acompanhada por pedidos de cadeia e ameaças de morte, ele teve ataques de pânico e entrou em depressão. Convites de trabalho foram cancelados, e a solidariedade recebida não foi suficiente para frear o horror. Depois que o pior já havia passado, restou a ele constatar que estaria para sempre ligado ao episódio: “Não houve enterro, nem vai haver. A internet inventou a eternidade (...). Este é o truque do século XXI, fazer com que você acredite que um corpo possa desaparecer”.
Mas A nudez... não é um texto direto de vingança. Schwartz é um artista, e é como tal que consegue falar do trauma, elaborando-o como um oposto daquilo que seus candidatos a algozes são. Em vez de usar a linguagem literal das acusações, o autor constrói um discurso sem sentido único, feito de fragmentos do noticiário real e de uma realidade inventada, na qual a estrutura do livro — alternando texto, fotografia e ilustração, em gêneros como o relato, o ensaio, a entrevista e o teatro — emula a subjetividade múltipla da memória.
Como no caso da performance do MAM, a experiência estética surge a partir de uma experiência física. Tudo começa e termina no corpo, que seguiu produzindo seus efeitos (os “jatos de ansiedade” ao ter que falar do assunto, por exemplo) enquanto Schwartz estava entregue à fúria da manada. Como expressar isso de um ponto de vista que é e não é particular, é e não é mediado? “Não era a arte que precisava de proteção, era eu. Mas além de ter que falar com uma voz coletiva, não poderia deixar a arte descer de seu estatuto de Arte. Tinha que responder as perguntas como um artista e não como quem sofreu um ataque.”
Le corps est le début et la fin de tout
Michel Laub, Valor Econômico, 3/11/2023
Il viendra encore beaucoup de livres pour expliquer la transe moraliste qu’a vécue le Brésil ces dernières années. Il sera difficile d’ôter de la liste La nudité de la copie imparfaite, du chorégraphe Wagner Schwartz.
Il est important de rappeler précisément ce par quoi l’auteur est passé. Au milieu de centaines de commentaires privés et publics, très souvent accompagnés de demandes d’arrestation et de menaces de mort, il a eu des crises de panique et est tombé en dépression. Des invitations de travail ont été annulées, et la solidarité reçue n’a pas été suffisante pour retenir l’horreur. Le pire passé, il lui restait à constater qu’il serait à jamais lié à cet épisode : « Il n’y a pas eu d’enterrement, et il n’y en aura pas. Internet a inventé l’éternité (…). C’est le truc du xxie siècle, faire en sorte que tu croies qu’un corps peut disparaître. »
Mais, La nudité… n’est pas directement un texte de vengeance. Schwartz est un artiste, et c’est comme tel qu’il parvient à parler du traumatisme, en l’élaborant comme quelque chose d’opposé à ce que sont ses apprentis bourreaux. Au lieu d’employer le langage littéral des accusations, l’auteur construit un discours dépourvu de sens unique, fait de fragments de l’actualité réelle et d’une réalité inventée, dans laquelle la structure du livre — qui alterne texte, photographie et illustration, traversant des genres comme le récit, l’essai, l’interview et le théâtre — stimule la subjectivité multiple de la mémoire.
Comme dans le cas de la performance du MAM, l’expérience esthétique apparaît à partir d’une expérience physique. Tout commence et s’achève dans le corps, qui a continué de produire des effets (les « jets d’anxiété » en devant parler du sujet, par exemple) pendant que Schwartz était livré à la furie du troupeau. Comment exprimer cela d’un point de vue qui est et n’est pas particulier, qui fait et ne fait pas l’objet d’une médiation ? « Ce n’était pas l’art qui avait besoin de protection, c’était moi. Mais en plus d’avoir à parler d’une voix collective, je ne pouvais pas laisser l’art descendre de son statut d’Art. Je devais répondre aux questions comme un artiste et non comme quelqu’un qui a subi une agression ».
[Traduction : Antoine Chareyre]
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Auteur de Journal de la chute (2014) et de La pomme empoisonnée (2017), traduits par Dominique Nédellec aux éditions Buchet Chastel, Michel Laub est journaliste et écrivain, né en 1973 à Porto Alegre. Journal de la chute est son cinquième roman, et le premier traduit en français. Nommé et lauréat de nombreux prix au Brésil et au Portugal, Michel Laub figure sur la prestigieuse liste du magazine britannique Granta des vingt auteurs de moins de quarante ans les plus importants au Brésil.
The body is the beginning and the end of everything
Michel Laub, Valor Econômico, November 3rd, 2023
No doubt, more books will be published attempting to explain the moral crisis that Brazil has experienced in recent years, but The Nakedness of the Imperfect Copy by the choreographer Wagner Schwartz will continue to be necessary reading.
It’s important that we remember, in detail, what the author has suffered. After receiving hundreds of hostile comments, both publicly and privately, many of them accompanied by calls for his imprisonment and death threats, the artist subsequently experienced panic attacks, falling into a deep depression. Invitations to perform his work were suddenly cancelled, and the show of solidarity he’d received wasn’t enough to bring to a halt the advancing horror. After the worst had passed, he understood that, nevertheless, for the rest of his life he’d be connected to the incident: “There was no burial of the dead, and there never would be. The internet invented eternity… This is the trick of the 21st century, to make you believe a body could simply disappear.”
But The Nakedness is not a book focused on vengeance. Schwartz is an artist, so much so that he is able to give language to his trauma, crafting it as a counterpoint to what his tormenters represent. Instead of using the literal language of the accusations leveled against him, the author creates a text with multiple meanings, a text composed of fragments of real and invented news, so that the book’s structure — alternating between text, photography and illustration, moving between memoir, essay, interview and theater — emulates the multiple subjectivities of memory.
As in the case of his performance at MAM, the aesthetic experience arises from a physical experience. Everything begins and ends with the body, which continued producing certain effects while Schwartz remained at the mercy of the mob’s fury (effects such as “floods of panic,” for instance, whenever the artist was compelled to speak on the subject). How does one write about this experience from a point of view that is and isn’t unique, that is and isn’t mediated? “It wasn’t my art that needed protection, it was I. But in addition to having to speak with a collective voice, I couldn’t let art descend from its status as Art. I had to respond to the questions put to me as an artist, not as the victim of an attack.”
[Translation: Johnny Lorenz]
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Michel Laub was born in Porto Alegre in 1973. A writer and journalist, he has published four novels, all through Companhia das Letras: Música Anterior (Anterior Music), 2001; Longe da Água (Far from the Water), 2004, also released in Argentina; O Segundo Tempo (The Second Half), 2006; and O Gato Diz Adeus (Cat's Farewell), 2009. He is a winner of the Erico Verissimo/Revelation prize, conferred by the Brazilian Writers’ Union, and was twice short-listed for the Jabuti and Portugal Telecom awards, among others. His works have been published in Denmark, France, Germany, Holland, Israel, Italy, Norway, Portugal, Spain, Sweden, Turkey and the UK.
Books in English: A Poison Apple, Diary of the Fall: A Novel