A Boba
Durante um passeio, fim de tarde de domingo, um amigo e eu conversamos sobre o trabalho de Anita Malfatti. Ele me apresenta A Boba, pintura criada entre 1915 e 1916, ao longo da estadia da artista nos Estados Unidos — umas das criações mais contundentes do modernismo brasileiro, como também o clímax de sua produção expressionista. Esta é uma fase em que a pintura de Anita, pessoal e intuitiva, absorve motivos sólidos e duradouros — influência da arte africana.
Quando A Boba chega ao Brasil, parece estar em descompasso com a cidade natal da artista, mesmo que, segundo o historiador Nicolau Sevcenko, “São Paulo não seja uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem europeia, nem nativa; nem industrial, apesar do volume crescente das fábricas; nem um entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café. É, enfim, uma Babel invertida”.
Seu pensamento assombra os corredores dos Estados Unidos do Brasil — importunando as conversas inocentes no jardim — onde a questão social se tornou um caso de polícia.
A crítica é perversa: “Paranoia ou mistificação? Seduzida pelas teorias do que ela chama de arte moderna, penetra nos domínios de um impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura”.
Anita toma a liberdade de pintar a seu modo.
Durante um telefonema, início da manhã de segunda-feira, um curador europeu e eu conversamos sobre A Boba, criação com início em setembro de 2018. Digo a ele que, para a construção deste espetáculo, passo a frequentar o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, de cujo acervo o quadro de Anita Malfatti faz parte. Uma fotógrafa registra a primeira visita. Nas imagens, parece que a figura central da pintura e eu nos conhecemos.
Faço confissões. Fazemos selfies, também. Não sei se o curador tem conhecimento, mas, em português, A Boba forma um palíndromo, e pode ser lida tanto da direita para a esquerda quanto da esquerda para a direita.
Quando olho para o quadro, percebo as cores da bandeira brasileira, como também as manchas vermelhas, que compõem o espaço onde ela tem sido hasteada. Digo ao curador que, por aqui, aprendemos, coercitivamente, que o sentimento de liberdade não deve ultrapassar o peso do próprio corpo, para não perturbar o sono da maioria. E confesso que, agora, preciso realizar o funeral de um dogma, de uma depressão cívica, de uma ideia constrangedora de nação.
Tomo a liberdade de fazer a meu modo.
Concepção, performance: Wagner Schwartz
Colaboração dramatúrgica: Ana Teixeira, Elisabete Finger
Direção técnica, iluminação: Juliana Vieira
Produção: Gabi Gonçalves / Corpo Rastreado
Coprodução: Corpo Rastreado / MITsp
Apoio: Casa Líquida
Apoio cultural: Instituto Anita Malfatti
Objeto: Réplica do quadro A Boba, de Anita Malfatti / Imagem cedida pela Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
Agradecimento: Sylvia Malfatti, Paula Malfatti, Júlia Feldens, Lucas Länder, Iris de Souza, Karlla Girotto, Renato Hofer, MASP, MAC USP
Duração: 40 minutos
L’Idiote
Au cours d’une promenade, un dimanche en fin d’après-midi, un ami et moi discutons du travail d’Anita Malfatti. Il me présente L’Idiote, un tableau réalisé entre 1915 et 1916 au cours du séjour de l’artiste aux États-Unis — une des créations les plus frappantes du modernisme brésilien, ainsi que le sommet de sa production expressionniste. Celle-ci correspond à une phase durant laquelle la peinture d’Anita, personnelle et intuitive, intègre des motifs solides et durables — influence de l’art africain.
Quand L’Idiote arrive au Brésil, le tableau semble en décalage avec la ville natale de l’artiste, même si, d’après l'historien Nicolau Sevcenko, « São Paulo n’est ni une ville de Noirs, ni de Blancs, ni de métis ; ni d’étrangers, ni de Brésiliens ; ni américaine, ni européenne, ni autochtone ; ni industrielle, malgré la quantité croissante d’usines ; ni un entrepôt agricole, malgré l’importance cruciale du café. C’est, en fait, une Babel inversée. »
Ses pensées hantent les couloirs des États-Unis du Brésil — troublant les innocentes conversations dans les jardins —, où la question sociale est devenue une affaire de police.
La critique est perverse : « Paranoïa ou mystification ? Séduite par les théories de ce qu’elle appelle l’art moderne, elle pénètre sur les territoires d’un impressionnisme des plus discutables, et met tout son talent au service d’une nouvelle sorte de caricature. »
Anita prend la liberté de peindre à sa manière.
Au téléphone, le lundi matin à l’aube, un programmateur européen et moi discutons de L’Idiote, une création inaugurée en septembre 2018. Je lui dis que, pour la conception de ce spectacle, je fréquente le Musée d’Art Contemporain de l’Université de São Paulo, dans la collection duquel se trouve la toile d’Anita Malfatti. Une photographe enregistre ma première visite. Sur les images, on dirait que la figure centrale du tableau et moi-même nous connaissons.
Je lui fais des aveux. Nous prenons des selfies, aussi. Je ne sais pas si le programmateur le sait, mais en portugais, L’Idiote [A Boba] forme un palindrome, pouvant se lire aussi bien de droite à gauche que de gauche à droite.
Quand je regarde le tableau, je remarque les couleurs du drapeau brésilien, ainsi que des taches rouges qui composent l’espace où il a été hissé. J’explique au programmateur qu’ici, nous apprenons de façon coercitive que le sentiment de liberté ne doit pas dépasser le poids de notre propre corps, pour ne pas perturber le sommeil de la majorité. Et j’avoue que, en ce moment, j’ai besoin de célébrer les funérailles d'un dogme, d’une dépression civique, d’une idée contraignante de la nation.
Je prendre la liberté de faire à ma manière.
Conception et performance : Wagner Schwartz
Collaboration dramaturgique : Ana Teixeira, Elisabete Finger
Direction technique, illumination : Juliana Vieira
Production : Gabi Gonçalves / Corpo Rastreado
Coproduction : Corpo Rastreado / MITsp
Soutien : Casa Líquida
Soutien culturel : Institut Anita Malfatti
Objet : Réplique du tableau L’Idiote, d’Anita Malfatti / Image reproduite avec l'autorisation de la Collection du Musée d'art contemporain de l'Université de São Paulo
Traduction du texte en français : Sylvain Bureau, Antoine Chareyre
Remerciements : Sylvia Malfatti, Paula Malfatti, Júlia Feldens, Lucas Länder, Iris de Souza, Karlla Girotto, Renato Hofer, Caroliny Pereira, Vladimir Igrosanac, MASP, MAC USP
Durée : 40 minutes
Silly Woman
During a walk on a late Sunday afternoon, a friend and I were talking about the work of Anita Malfatti. He showed me Silly Woman, a painting created between 1915 and 1916 during the artist's time in the United States—and one of the most striking creations of Brazilian modernism, as well as the climax of its expressionist production. This is a phase in which Anita's personal and intuitive painting absorbs solid and lasting motifs—the influence of African art.
When Silly Woman arrived in Brazil, she seemed incongruous with the artist's hometown, even though, according to historian Nicolau Sevcenko, "São Paulo is not a city of black, white or mixed race people, nor of foreigners or Brazilians. It is not American, European nor native, neither is it industrial, despite the increasing number of factories, nor an agricultural hub, despite the crucial importance of coffee. Ultimately, it is an inverted Babel".
Her thinking haunts the corridors of the United States of Brazil—inconveniencing innocent conversations in the garden—where the social issue has become a case for the police.
The criticism is perverse: "Paranoia or Mystification? Seduced by the theories of what she calls modern art, she penetrates into the realms of a most questionable impressionism, and puts all of her talent at the service of a new kind of caricature."
Anita takes the liberty of painting in her own way.
During a phone call early Monday morning, a European curator and I talked about the Silly Woman, a creation that will begin in September 2018. I tell him that, for the construction of this solo performance, I frequent the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo, which includes the painting by Anita Malfatti as part of its collection. A photographer records the first visit. In the images, it seems that the central figure of the painting and I know each other.
I make confessions. We take selfies, too. I don't know if the curator is aware, but Silly Woman in Portuguese, "A Boba", forms a palindrome, and can be read the same from right to left or from left to right.
When I look at the painting, I see the colors of the Brazilian flag, as well as red smudges, which form the space where it has been hung. I explain to the curator that here we learn, by force, that the feeling of freedom should not extend beyond the weight of one's own body, so as not to disturb the sleep of the majority. And I confess that, at this moment, I need to perform a funeral for a dogma, one of civic depression, the embarrassing idea of a nation.
I take the liberty of doing it my way.
Creation and performance: Wagner Schwartz
Dramaturgical collaboration: Ana Teixeira, Elisabete Finger
Technical direction, lighting: Juliana Vieira
Production: Gabi Gonçalves / Corpo Rastreado
Co-production: Corpo Rastreado / MITsp
Support: Casa Líquida
Cultural support: Institute Anita Malfatti
Object: Replica of the painting Silly Woman by Anita Malfatti / Image reproduced with the permission of the Collection of the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo
Text translation (from Brazilian Portuguese): Robert McClure, Benjamin Trivers
Acknowledgments: Sylvia Malfatti, Paula Malfatti, Júlia Feldens, Lucas Länder, Iris de Souza, Karlla Girotto, Renato Hofer, MASP, MAC USP
Running time: 40 minutes